Tempo de odiar

Giovanni Alecrim
7 min readJun 26, 2022

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Uma reflexão bíblica sobre a escolha do ódio

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Em abril de 2020 publiquei um texto chamado O dia em que Jesus pegou em armas, procurando mostrar que esta visão “Jesuzinho paz e amor” que muita gente prega por aí não é bíblica, pelo contrário, ela é diabólica. “Lembremos que, diante dos indialogáveis mercadores do templo, Jesus pegou em armas para expulsá-los.”

Hoje quero lançar meu olhar sobre um texto muito querido do Antigo Testamento por aqueles que gostam de justificar seus temperamentos e atitudes: Eclesiastes 3. Nele se encontra resposta para encaixar quase tudo o que quiser, e, no fim deste poema, no verso oito, o contraste entre amar e odiar, guerra e paz.

¹Há um momento certo para tudo, um tempo para cada atividade debaixo do céu

⁸Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.

Eclesiastes 3.1,8, tradução Nova Versão Transformadora.

Eclesiastes: O COÉLET

Antes de falar do verso 8 do capítulo 3, precisamos compreender um pouco do livro. Assim como Provérbios, o Eclesiastes teve sua autoria atribuída a Salomão, embora não se tenha nenhum registro acerca da autoria do livro. O autor é designado por um substantivo, COÉLET, que significa coletor de sentenças, pregador, orador público, orador em uma assembleia. A Septuaginta traduziu como Eclesiastes. O livro todo é quase que uma junção de pensamentos e ideias que, em contraponto com a sabedoria tradicional, nem sequer se relacionam, fazendo jus ao seu nome de coletor de sentenças.

O COÉLET surgiu por volta do século IV a.C. Por ser um livro de sabedoria, encontramos nele a crise da sabedoria tradicional contraposta e dialogada com a filosofia helenista. Um caminho para leitura deste ajuntado de ditos sapienciais é ler seu todo em contraste aos capítulos 1 e 2. A conclusão do autor, que fora educado na sabedoria tradicional, é expressa no versículo dois do capítulo primeiro: “Nada faz sentido”, diz o Mestre. “Nada faz o menor sentido.” O termo aqui traduzido por “sentido”, no original significa sopro, brisa, hálito, simbolizando a transitoriedade da vida e a inevitabilidade da morte.

Para o COÉLET, a morte é o fim definitivo da vida e os breves dias devem ser aproveitados. Segundo a Bíblia do Peregrino: Na mente atormentada do autor, a sabedoria entra em conflito consigo mesma. E isso de modo entranhável e apaixonado, se pudéssemos falar de paixão fria. Rebelde sem violência, contestador sem arrogância. A realidade nua e crua do texto nos chama para uma verdade inconveniente: a vida não é isso tudo que dizem por aí, ela é dor, sofrimento e separação.

Tempo de amar, tempo de odiar

O contraste se apresenta na sentença incômoda de que o texto bíblico nos diz haver sim um tempo para o ódio. No hebraico ele é escrito no absoluto, ou seja, no infinitivo mesmo, e ocorre nesta forma, como referência ao ser humano apenas aqui.

As Bíblias de estudos que comentam tal destaque ao ódio o fazem em contraste ao princípio ético bíblico de se amar o próximo e referenciam textos paralelos que não utilizam a mesma forma verbal. Comentaristas bíblicos também fogem do odiar enquanto prática, preferindo apenas apontar ser um comportamento reprovável.

Lendo o COÉLET você consegue perceber uma característica da língua hebraica que pode ser pouco percebida por nós, leitores ocidentais da língua portuguesa no século XXI. Não há espaços para a abstração, é tudo concreto, até mesmo na poesia, e o ódio é bem concreto neste texto.

O COÉLET nos ensina que a vida é feita de bons e maus momentos. Dias bons podem nos levar a amar com mais intensidade, dias ruins podem exigir de nós o amor como escolha urgente e necessária. E onde entra o ódio? Haverão dias, e circunstâncias, que amar não será possível, naqueles dias você vai odiar. O quê? Quem? O objeto do ódio é o que menos importa aqui, mas sim o ódio enquanto reação e atitude cabível.

O COÉLET está preocupado em nos mostrar que para cada atividade ou propósito haverá uma reação cabível. Amar e odiar são reações cabíveis e sou eu e você que vamos fazer a escolha de qual dos dois vamos abraçar em cada situação. Não se trata de uma escolha para tudo na vida, jamais é para o todo, pois o todo é a soma de todas as reações narradas nos versos de dois a oito do terceiro capítulo. Não é à toa que estão no infinitivo vinte e seis das vinte oito reações cabíveis a nós. Caso queira ler o capítulo inteiro para conferir, só clicar: Eclesiastes 3.

Portanto, o COÉLET está nos dizendo: “faça a sua escolha: odiar ou amar”. Saiba, também, que independente de sua escolha: “Nada faz sentido”, diz o Mestre. “Nada faz o menor sentido.” Eclesiastes 1.2. Fica aí com essa provocação.

O que o Novo Testamento diz?

Como pode a Bíblia dizer haver tempo para odiar? Sempre encontramos como reação a esta afirmação do Eclesiastes o texto da carta aos Efésios: E “não pequem ao permitir que a ira os controle”. Acalmem a ira antes que o sol se ponha, pois ela cria oportunidades para o diabo. Efésios 4.26–27

O autor da carta incluí tal recomendação justamente no bloco em que trata da unidade dos cristãos como marca da fidelidade a Cristo. A ira não deve nos controlar, ela é perniciosa e até os sábios filósofos sabiam disto. Sêneca, em seu ensaio “Sobre a ira” escreveu: É mais fácil excluir do que controlar impulsos perniciosos, e não acolhê-los do que moderá-los depois de acolhidos. De fato, depois que se assentaram em seu domínio são mais poderosos do que quem os controla, e não toleram sofrer cortes ou ser diminuídos¹. A recomendação, portanto é para não alimentar a ira e nem instigá-la.

E o ódio? Bem, o ódio é referenciado no Novo Testamento como sendo uma atitude dos não cristãos para com os cristãos. “O mundo os odeia”, por exemplo, é recorrente nos Evangelhos e Cartas. A palavra de Jesus quanto ao ódio é para amarmos aqueles que nos odeiam. Mas a vocês que me ouvem, eu digo: amem os seus inimigos, façam o bem a quem os odeia, abençoem quem os amaldiçoa, orem por quem os maltratam. Lucas 6.27–28. Com isto, podemos concluir que Jesus nos intima a escolher o amor, pois sabe bem que o ódio é uma escolha cabível em muitas situações vividas pela humanidade. Cabível, mas não deve ser aceitável, nem sequer cogitada, como escolha pelos discípulos de Jesus de Nazaré.

Ira, ódio, o que fazer?

Há um equívoco interpretativo em pensar que ira e ódio são sinônimos. Não são, a ira é fruto de uma reação a uma provocação ou inadequação que nos atinge, geralmente, em relação a temas basilares para nossa compreensão de mundo e controle do que vivemos. O ódio não é uma reação a uma provocação, mas a construção argumentativa, lógica e fundamentada de que o objeto dele é plausível, sendo tal objeto uma ameaça real e palpável para nossa própria existência. A ira é quase que instintiva, o ódio é uma escolha.

É por isso que há tempo para a guerra e para a paz, porque no tempo para guerra o COÉLET sabe que se deve lutar para preservar aquilo que atitudes de ódio tentam tirar do povo. E não, esta não é uma justificativa bíblica para a guerra. A guerra é uma das muitas consequências do ódio e escolher odiar é ruim. O poema de Eclesiastes 3.1–8 é escrito mostrando oposições justamente para reforçar que existem coisas ruins na vida e elas acontecerão, mas não são para sempre.

Sim, existem coisas ruins na vida e o diabo não é culpado por elas. O conceito de diabo não está presente no COÉLET, ali as más consequências são frutos das escolhas ruins que se faz. Assuma as suas escolhas, não seja um imaturo que escolhe e depois põe a culpa nos outros. O ódio faz parte da existência humana e, na força do Espírito Santo, conseguimos escolher amar ou odiar.

Caso já tenha escolhido odiar, saiba que há um momento certo para tudo e o momento de odiar já pode ter passado, se não passou, vai passar. Tenha sabedoria para transformar o ódio através de atitudes de amor. Comece obedecendo Jesus: orem por quem os maltrata. A oração é o primeiro passo para sair do ódio, pois a oração é um gesto de amor.

Em suma, transforme o seu ódio em luta contra o ato de odiar, contra o que ameaça nossa própria existência, contra o que ameaça o ser humano e a criação em sua totalidade. Quando afirmamos que o amor vence o ódio, não falamos de uma guerra dualista, mas de uma realidade impositiva de Deus sobre a nossa vida manifesta em atitudes de união, amor e diversidade. O tempo pode ser de odiar quem nos faz o mal, mas este tempo vai passar para que o amor seja vivido em todo tempo, mesmo no tempo de odiar.

¹Sobre a ira. Sobre a tranquilidade da alma: diálogos / Sêneca ; tradução, introdução e notas de José eduardo s.lohner. — 1a ed. são Paulo: Penguin Classics Companhia das letras, 2014, acessado em 25 de junho de 2022

POST SCRIPTUM

Se você chegou até aqui na leitura e pensa que este texto incentiva a prática do ódio, recomendo você ler novamente e exercitar a capacidade de interpretar texto. Busquem o amor.

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Giovanni Alecrim

Um ser deslocado, fazedor de coisas