Resistência e resiliência na Igreja
Como a relação entre o cristão e a instituição deve ser de liberdade, e não de prisão…ou, ideias de um cristão que se (re)descobriu anarquista
O presente texto está longe de ser um manual. Tão pouco se presta a ser uma tentativa de conciliação entre o ser anarquista e o ser cristão, eles possuem pontos em comum e divergentes, como toda forma política de pensar. Também não pretendo te convencer a ser um anarquista. Por fim, não quero incitar ninguém à rebeldia e rompimento institucional. A jornada do meu pensamento político se inicia em minha adolescência ligada à esquerda social-democrata, passa por um flerte com os anarquistas em meados da década de 1990 e retorna para o anarquismo de 2019 para cá. No fundo, os ideais de liberdade e fim de toda forma de poder estiveram, e estão comigo desde sempre.
O anarquismo é liberdade. Livrar-se das amarras e lutar contra os domínios de poder que pessoas e instituições exercem umas sobre as outras. O ideal anárquico é, em primeira e em última instância, a busca pela liberdade, sem ninguém ficar de fora. Como, então, ser um anarquista dentro de uma instituição chamada Igreja? Como pode existir um pastor anarquista, visto que pastores têm a fama de justamente terem poder em suas mãos? É sobre isso que vou conversar com você agora.
…por Anarquismo se entende o movimento que atribui, ao homem como indivíduo e à coletividade, o direito de usufruir toda a liberdade, sem limitação de normas, de espaço e de tempo, fora dos limites existenciais do próprio indivíduo: liberdade de agir sem ser oprimido por qualquer tipo de autoridade, admitindo unicamente os obstáculos da natureza, da “opinião”, do “senso comum” e da vontade da comunidade geral — aos quais o indivíduo se adapta sem constrangimento, por um ato livre de vontade. Tal definição genérica, avaliada de diversas maneiras por pensadores e movimentos rotulados de anárquicos, pode ser sintetizada através das palavras retomadas em nosso século, por volta dos anos 20, pelo anárquico Sebastien Faure na Encyclopédie anarchiste: “A doutrina anárquica resume-se numa única palavra: liberdade”. [Bobbio, Norberto, 1909- Dicionário de política Editora Universidade de Brasília]
Conceito cristão de liberdade
Partindo da definição de Bobbio, podemos começar dialogando com o conceito cristão de liberdade, que, de cara, pode nos parecer antianárquico. Para isso vou recorrer a um evangelista e dois apóstolos.
O escravo não é membro permanente da família, mas o filho faz parte da família, para sempre. Portanto, se o Filho os libertar, vocês serão livres de fato.(João 8.35–36)
Neste texto Jesus está apresentando aos discípulos a realidade de que eles são escravos de Deus, não mais do pecado e que, no entanto, o próprio Jesus, o Filho de Deus, não os chama de escravos, mas sim de amigos. O que Jesus faz, aqui, é igualar a todos, inclusive ele mesmo. Ele, que é Senhor, nos chama de amigos, de irmãos.
Eu, Tiago, escravo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, envio esta carta às doze tribos espalhadas pelo mundo. Saudações. (Tiago 1.1)
Já neste trecho há o reconhecimento do apóstolo Tiago de sua condição. Ele é escravo de Deus e do Senhor Jesus Cristo. Parece não haver liberdade em tal afirmação, mas é o contrário. Na escravidão cujo Deus é o Senhor, reina a liberdade do ser humano viver sabendo que o pecado, ou seja, aquilo que é ruim ao ser humano, não o domina mais.
“Tudo me é permitido”, mas nem tudo convém. “Tudo me é permitido”, mas não devo me tornar escravo de nada. (1Coríntios 6.12)
O apóstolo Paulo, neste trecho, está nos lembrando que o pecado é quando nos tornamos escravo de algo que não o Senhor da Liberdade.
A liberdade cristã, portanto, está alicerçada em reconhecer que Deus é o Senhor, que ele nos trata com amor e justiça e que nada nem ninguém deve ter o domínio sobre nós. Até aqui tudo bíblico e também tudo muito utópico, idealizado. Ainda mais quando tiramos os olhos do texto bíblico e olhamos ao redor, para a instituição em que cada cristão está ligado. É inevitável o cristianismo institucional. A Igreja nasce instituição, o primeiro ato dos apóstolos é eleger um novo apóstolo. Um ato institucional.
Igreja é instituição
Antes de entrar no mérito da resistência e resiliência, precisamos pontuar alguns sistemas de governo eclesiásticos, para que o não cristão que esteja lendo aqui possa compreender o que diremos mais abaixo.
- Episcopal: sistema baseado nos bispos, que são responsáveis por regiões e pela administração das mesmas. Poder centrado numa pessoa, chancelada pela instituição. Quais? Igrejas Ortodoxas, Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Anglicana, Igreja Metodista.
- Representativo: sistema baseado nos concílios, que são os responsáveis pela administração, tendo concílios superiores e inferiores, formando uma pirâmide institucional. Poder centrado no grupo de pessoas, chancelada pela instituição. Quais? Igreja Presbiteriana, Igreja Reformada.
- Congregacional: sistema baseado na comunidade, o todo da igreja é responsável pela sua administração, geralmente com diretores (diáconos) que regem o funcionamento entre as reuniões da assembleia. Poder centrado nos diretores, chancelado pela comunidade. Quais? Igreja Batista, Igreja Congregacional.
- Autocrático: O pastor é o dono da igreja. Poder centrado numa pessoa que é a própria instituição. Quais? Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça, Igrejas neopentecostais em geral.
Em todos eles há aspectos positivos e negativos, exceto o quarto, que é todo negativo e por isso não falo mais nele à partir de agora e, sempre que me referir a sistemas de governo eclesiástico, de agora em diante, o autocrático não está incluso. É dentro dessa diversidade de formas governos que o cristão se move e o cristão anarquista acaba não fugindo muito disso, visto que ele é compelido, pelo Evangelho e pelo Espírito Santo, a manter contato com a comunidade de fé, não existe cristianismo do “eu sozinho”. “O Reino de Deus é um Reino de amigos” (Hans Bürky), o que nos coloca diante da necessidade de ajuntamento, povo reunido e celebração comunitária.
Dentro da igreja as normas e as regulamentações ditam o funcionamento e andamento da mesma. Em todos os sistemas citados acima, os líderes evocam a providência divina e a fundamentação bíblica para balizar seu funcionamento. A autoridade vem revestida de ares espirituais, levando a uma autoridade inquestionável de seus líderes e de seus sistemas, que são dogmatizados. Em busca de uma uniformidade e pretensa unidade, igrejas se organizam com intuito de moldar e educar seus membros e líderes conforme o sistema estabelecido, criando verdadeiros defensores da instituição e pífios conhecedores do evangelho.
Resistência e resiliência
Se o evangelho liberta, por que então instituições insistem em criar dogmas que aprisionam? A resposta é a mesma que levou Constantino a se converter e oficializar a igreja como religião oficial do Império Romano: poder. Determinar o que deve ser ensinado e aprendido, sem abrir espaço para questionamentos e mudanças em suas estruturas. O empedramento, ou fundamentalismo, dentro das igrejas acontecem em maior ou menor escala e, de tempos em tempos, até as instituições tidas como mais liberais passam por períodos de maior enrijecimento de seus meios de funcionamento.
Se é dentro do contexto igreja que eu estou, é a ele que devo me submeter. Certo? Não quero incitar ninguém à rebeldia, mas não. A submissão às chamadas autoridades eclesiásticas é um exercício que sucede à submissão ao evangelho e, entre o evangelho e a autoridade eclesiástica, fique com o evangelho. Isso pode significar você romper com determinadas instituições, principalmente as mais fundamentalistas, que vão procurar meios de reter pessoas pelo medo e pelo cegamento intelectual de seus membros, em outras palavras, doutrinação ideológica que nada tem de cristã. Resistir significa permanecer firme no evangelho. Onde o evangelho está, ali há liberdade. Sempre que cito essa sentença ouço uma chuva de “mas” vinda de pastores de todos os lados. Sinto muito, mas não tem “mas”. Evangelho é liberdade e ponto final.
A instituição deve fazer o mínimo possível para que os cristãos possam fazer o máximo possível. Ariovaldo Ramos
A frase acima foi dita num encontro com líderes cristãos e, no meu entender, o pastor Ariovaldo quis ser educado. Talvez, no meu entendimento, a frase deveria começar com “a instituição deve atrapalhar o mínimo possível…”. É nessa linha que tenho tentado pastorear, atrapalhando o mínimo possível e dando condições dos membros vivenciarem a liberdade que Cristo nos dá. Por vezes sinto que falho miseravelmente, por outras, sinto que estou no rumo. É uma construção.
No meio desse processo, haverá momentos em que ficar com o evangelho custará tomar atitudes que vão contra a instituição. Nesse momento haverá consequências institucionais, que podem ou não custar muito a um pastor. É a hora que a fidelidade ao evangelho deve ser vivida. Cabe aqui um alerta: fidelidade ao evangelho não é fidelidade ao que você pensa ser o evangelho, cuidado com o que é ensinado como boa nova de salvação e, na verdade, é mero sistema de pensamento teológico, nada contra os mesmos, mas eles não são o evangelho.
Resistir caminha ao lado de ser resiliente. É preciso criar um meio de dialogar com as pessoas da instituição e suportar, em nome do evangelho que gera comunhão, as discordâncias e divergências. Não digo com isso que se deve ser subserviente, mais uma vez, o caminho é o evangelho. Não admita que coloquem sobre você amarras que contradizem o evangelho. Por outro lado, não saia por aí achando que toda regulamentação e regra de sua igreja é uma prisão. Ou a igreja existe para que a liberdade do evangelho seja uma verdade, ou ela é só uma dentre as muitas instituições que exercem poder de cercear e manipular pessoas.
Encerrando, a resposta a toda forma de poder deve ser, na concepção cristã, o evangelho. O fato de carregar comigo princípios anarquistas, que ainda estão e fase de amadurecimento e alinhamento com os princípios do evangelho, vão me norteando em minha caminhada. Onde pretendo chegar? Lugar nenhum, já estou onde Deus quer e com ele pretendo sempre estar, se ele assim desejar.