Passado perdoado
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O que fazer quando um mal do passado se materializa, no presente, diante de você?
¹José não conseguiu mais se conter. Havia muita gente na sala, e ele disse a seus assistentes: “Saiam todos daqui!”. Assim, ficou a sós com seus irmãos e lhes revelou sua identidade. ²José se emocionou e começou a chorar. Chorou tão alto que os egípcios o ouviram, e logo a notícia chegou ao palácio do faraó.
³“Sou eu, José!”, disse a seus irmãos. “Meu pai ainda está vivo?” Mas seus irmãos ficaram espantados ao se dar conta de que o homem diante deles era José e perderam a fala. ⁴“Cheguem mais perto”, disse José. Quando eles se aproximaram, José continuou: “Eu sou José, o irmão que vocês venderam como escravo ao Egito. ⁵Agora, não fiquem aflitos ou furiosos uns com os outros por terem me vendido para cá. Foi Deus quem me enviou adiante de vocês para lhes preservar a vida. ⁶A fome que assola a terra há dois anos continuará por mais cinco anos, e não haverá plantio nem colheita. ⁷Deus me enviou adiante para salvar a vida de vocês e de suas famílias, e para salvar muitas vidas. ⁸Portanto, foi Deus quem me mandou para cá, e não vocês! E foi ele quem me fez conselheiro do faraó, administrador de todo o seu palácio e governador de todo o Egito.
⁹“Agora, voltem depressa a meu pai e digam-lhe: ‘Assim diz seu filho José: Deus me fez senhor de toda a terra do Egito. Venha para cá sem demora! ¹⁰O senhor poderá viver na região de Gósen, onde estará perto de mim com todos os seus filhos e netos, rebanhos e gado, e todos os seus bens. ¹¹Ali eu cuidarei do senhor, pois ainda haverá cinco anos de escassez. Do contrário, o senhor e toda a sua família perderão tudo que têm’”.
¹²José acrescentou: “Vejam! Vocês podem comprovar com seus próprios olhos, e também meu irmão Benjamim, que sou eu mesmo, José, que falo com vocês! ¹³Contem a meu pai a posição de honra que ocupo aqui no Egito. Descrevam para ele tudo que viram e tragam-no para cá o mais rápido possível”. ¹⁴Chorando de alegria, ele abraçou Benjamim, e Benjamim também o abraçou e chorou. ¹⁵Então José beijou cada um de seus irmãos e chorou com eles; depois os irmãos conversaram à vontade com ele.
Gênesis 45.1–15
Joel Barrish, cidadão dos Estados Unidos, era um homem reservado. Não expressava seus sentimentos com palavras ditas, mas com desenhos e textos em seu diário. Um típico ser humano introvertido, depressivo e, como a maioria dos introvertidos entre os 20 e 30 anos no início dos anos 2000, profundamente desorientado.
Certo dia Joel descobre que sua ex-namorada, Clementine Kruczynski, pagou uma empresa para apagar da memória qualquer registro de Joel em sua mente. Atormentado, Joel decide fazer o mesmo. Enquanto está sedado pela empresa, ele se arrepende e tenta alertar os médicos a pararem.
Parece ficção? E é mesmo! Em 2004 entrou em cartaz “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança”, tendo Jim Carrey interpretando Joel Barrish e Kate Winslet interpretando Clementine Kruczynski, a direção é de Michel Gondry.
O que nosso texto tem a ver com “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança”? Você irá entender mais para frente. No momento, quero que se concentre na premissa: e se eu pudesse tirar da mente qualquer registro de sofrimento?
Enquanto você guarda essa premissa, vamos olhar para o contexto de Gênesis 45 para você compreender aonde quero chegar.
Em nosso texto, José está na sala com seus irmãos, cercado de funcionários do palácio. Os irmãos de José estavam todos aflitos por conta da armadilha que o próprio José havia feito, plantando um copo e prata e o dinheiro de volta. José estava testando seus irmãos. Não podia ser diferente, eles haviam vendido José.
Neste momento, José retira da sala toda presença política, que atrapalha. O assunto é familiar e há necessidade criar um espaço reservado. Pela terceira vez José chora por seus irmãos. Nas duas primeiras — Gênesis 42.24 e 43.30 — ele se retira para chorar, agora não, ele chora e exclama em alta voz: “eu sou José” e repete mais uma vez “Eu sou José, o irmão que vocês venderam como escravo ao Egito”. Este termo é pronunciado doze vezes no capítulo. Ao identificar-se, evoca na sala a presença espiritual de Jacó, como sombra protetora, como polo e força de unificação.
Mais uma vez eles se aproximam de José, mas desta vez, não se prostram. Há um desconcerto no ar. É compreensível o desconcerto: estão perante a vítima de suas invejas e traição. Mas têm de aproximar-se do longínquo, do distante; a aproximação material exprime a espiritual.
José interpreta a história em chave teológica. É um texto formalmente muito elaborado, com repetições e rimas. “… terem me vendido para cá” é o fato empírico; “Deus quem me enviou” é a ação de Deus, a “missão”; “adiante” segundo o desígnio previsto; “para lhes preservar a vida” é a finalidade de Deus: “salvar vidas”.
José tinha sonhado a história antecipadamente e a tinha previsto interpretando os sonhos dos outros. Agora interpreta o passado: ponto de chegada define o movimento: este ponto é a vida.
José tem de exorcizar a culpa e o sentido de culpa dos irmãos. A culpa ficou primeiro submersa pela ação do tempo, e José a fez aflorar à consciência. Uma vez presente aí, provocou turbação, medo, suspeita. O modo de exorcizar essa culpa: por um lado, contar com o arrependimento que a apagou e com a tribulação que a expiou; por outro lado, mostrar que mesmo a culpa fica sujeita às rédeas que Deus controla. Ao se referir ao Deus comum e ao pai comum, realizam uma convergência que os une.
Os versos 12 e 13 são como uma conclusão. O que viram e ouviram hão de contar; e o mais importante é ter visto e ouvido José em pessoa. Se estão reunidos os doze irmãos, falta o pai, que deve logo vir.
O abraço de Benjamim e José nos lembra outro abraço, o de Esaú e Jacó (33,4). Reata-se o diálogo autêntico, cientemente e em paz. Só agora podem falar na nova situação, em consciência; foi vencida a ignorância que erguia uma barreira no diálogo, pois, enquanto José falava aos irmãos, eles falavam ao vizir.
O que temos a aprender com o reencontro de José e seus irmãos? Extraio três aspectos que quero apresentar a vocês e convidar a refletir comigo. Primeiro destaque dessa história:
O distanciamento físico e temporal não nos deixa imunes a reencontrar o mal do passado.
Quanto tempo já havia passado? Quantos anos, dores e sofrimentos José havia vivido? Agora, parece que o jogo virou, não é mesmo? Ele estava por cima, mas muito por cima mesmo! Administrava e governava tudo no Egito, acima dele, só o faraó. Fundo do poço? Escravo? Não mais! Nada poderia abalar a confiança de José.
Nós somos assim. Quando tudo vai bem, se encaixa, está nos trilhos, a autoconfiança nos impulsiona. Os males do passado estão no passado, são vagas lembranças que não nos alcançam mais. Até o dia que eles batem à porta.
Distanciamento físico e temporal não nos deixa imunes a reencontrar com o mal do passado. Sensações, pensamentos e presenças que nos fizeram mal e que reaparecem, brotam diante de nós.
Por mais que o tempo passe, lembranças de situações ruins tendem a reaparecer. Muitos gostariam de ter a chance de Joel e Clementine, personagens de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, e pagar uma empresa para apagar as lembranças e memórias de algo em sua mente. Ainda não temos essa tecnologia e o filme questiona exatamente isso: se você tivesse a oportunidade, apagaria?
O fato é que pensamentos ruins, lembranças de acontecimentos do passado que nos causaram mal aparecem, por vezes, se materializam em nossa frente. A pergunta é: o que eu faço quando um mal do passado aparece diante de mim? Vamos para o segundo destaque que faço desta história:
Dores do passado não são, necessariamente, ruins.
É isso mesmo. “Mas, pastor, você não faz ideia da largura, altura e profundidade do meu sofrimento do passado”. Não sei, eu sei dos meus sofrimentos do passado, o quanto são dolorosos. Por isso eu te digo: eles não são necessariamente ruins.
O quanto você já viveu depois do mal que sofreu? O que você experienciou, superou, trabalhou para seguir adiante e agora, porque esse mal reaparece em forma de acontecimento, foto, pessoa, seja lá o gatilho que o despertou em sua mente, você se prostra de joelhos diante dele?
Não, lembranças ruins servem para colocar em perspectiva a história que vivemos. Superamos, realizamos e, mesmo que não tenhamos superado, o Giovanni vítima no passado, não é o Giovanni que reencontra as dores do passado numa lembrança de hoje.
Você é capaz, no poder do Espírito Santo, de vencer hoje o mal que te atormenta, seja ele do presente ou do passado. E nisto reside o terceiro destaque que faço desta história:
Não desperdice a oportunidade de resolver as dores do passado
Esta cena expõe a anatomia da reconciliação. Trata de lealdade familiar, mas, sobretudo, de perdão e arrependimento. A família de Jacó era profundamente problemática, a ponto de os irmãos venderem um irmão por ciúmes. Um fato medonho do passado não impediu a vítima de exercer o perdão.
Mais que laços familiares, José exalta a mão poderosa de Deus em tudo o que viveu. Não era ele que estava no controle, era Deus, portanto, seja, no fundo do poço, escravo numa casa, preso no estrangeiro ou na antessala do Faraó, não importa, o controle não estava em suas mãos.
Ele foi, sim, agente de sua vida, ele escolheu não tirar a vida no fundo do poço, não se deitar com a mulher de seu senhor, não mentir ou ficar calado na prisão, e em tudo ele viu a mão de Deus o guiando.
Agora, diante de si, ele tinha seus irmãos e a oportunidade e o poder de se vingar, mas ele optou por resolver as dores do passado. Não havia mais necessidade de carregar esse peso.
Conclusão
Concluindo. O reencontro de José com seus irmãos foi cheio de indas e vindas. Ele teve a oportunidade, e até a razão de se vingar de seus irmãos. Poderia lhes negar alimento e abrigo. No entanto, não foi vencido pelo mal do passado que vinha à tona diante de si, pelo contrário, compreendeu que o passado está acabado e que o presente é onde a vida é vivida
O desafio para nós é compreendermos que o passado não tem mais domínio sobre nós. José entendeu isso e viu o agir de Deus em tudo, do fundo do poço ao palácio de faraó.
Joel, em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança, entendeu isso também: o que foi vivido é parte de nós, seja bom, seja ruim, o que importa é o que fazemos no presente, como consequência do que vivemos. José escolheu perdoar e seguir adiante, reconstruir, abraçar ao invés de apartar.
Hoje temos uma escolha: deixar o passado mandar em nossas vidas, ou seguir adiante, impulsionados pelo Espírito Santo, transformando nossas vidas em agentes ativos da vontade de Deus para o seu Reino. E aí? Vai apagar da memória que você é filho do Rei, ou vai viver a graça de Deus na totalidade dos seus atos?
Sermão pregado no dia 20 de agosto de 2023 na Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP