No fim das contas…

Giovanni Alecrim
12 min readSep 10, 2022

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Uma série de mensagens poético-musical sobre os apocalipses da bíblia e da vida. Parte 2 de 4

Acabou. É o fim. No fim das contas, o que restará? Se restará… Desde que se tem registro de dados da humanidade, se encontra, advindo da tradição oral, registro sobre o fim do mundo. Visões apocalípticas que geram medo e temor a respeito das condutas e comportamentos no tempo em que se vive.

Na Bíblia, nosso texto sagrado, não é diferente. Os profetas, os apóstolos e o próprio Jesus falaram sobre o fim da história e como eles apontam para a justiça de Deus e a consumação do que você e eu chamamos de tempo e espaço.

Na cultura popular também encontramos estas expressões. E aqui, restrinjo apenas à cultura brasileira. De Carmem Miranda a Marisa Monte, da MPB ao Axé, passando pelas diversas tradições e culturas de um país continental, o que não faltam são previsões, histórias e utopias sobre o fim dos tempos.

No fim das contas… pretende olhar para estas visões registradas no texto da Bíblia Sagrada em quatro perspectivas: O dia do Senhor, As bestas de Daniel, A fala de Jesus sobre o fim dos tempos e o tradicional livro do Apocalipse. Vamos olhar para estes textos dialogando com a arte de nosso país e como suas diversas expressões musicais retrataram este fim dos tempos ou a existência de um mundo ideal. É assim que hoje olharemos para…

As quatro bestas de Daniel 7 e A cura de Lulu Santos

O ano era 1988. O Brasil aprovava sua constituição democrática e olhava para o futuro com esperança. O mundo estava envolto à uma epidemia que dava visibilidade a um povo, até então, ignorado, criminalizado e hostilizado em nosso meio. A pandemia do SIDA, ou da AIDS, como ficou popularmente chamada no Brasil, era uma realidade e ceifava vidas, principalmente entre a população homoafetiva. O que estigmatizou ainda mais tal doença e levou a população em geral, e o governo, a estigmatizar a doença como sendo ligada aos gays. Até o dia em que os chamados “cidadãos ilibados” passaram a contrair e morrer de AIDS.

Neste contexto, a desinformação e a ignorância foram combustível para muita discriminação e violência, chegando a matar pessoas, não pela doença, mas por tiro, socos e agressões. É neste contexto que o cantor carioca Lulu Santos lança seu sétimo álbum, Toda forma de amor, onde, no lado B, temos a canção intitulada A cura. Sobre a canção, diz Lulu Santos:

Esta é uma canção que escrevi em 1988 impacto pelo efeito da primeira epidemia que a humanidade enfrentou na segunda metade do século XX, que foi a AIDS. Vi uma quantidade enorme de artistas importantes que eu acompanhava e mesmo amigos próximos serem levados. Aquilo me tocou de uma forma que eu tive que expressar uma mensagem de esperança de alguma cura. Passam-se 20 e alguns anos e está de novo a humanidade enfrentando uma situação semelhante e bem menos seletiva. Bem mais geral e continua aqui a esperança: “Existirá e toda raça então experimentará para todo mal, a cura”.

A música voltou a ser muito tocada em 2020, quando o anúncio da aprovação das vacinas contra a COVID-19 foi feito e se tornou imediatamente um hino para aqueles que sabem que a cura existe e está acessível.

Vamos então à letra desta obra de Lulu Santos e compreender sua relação conosco.

Existirá, em todo porto tremulará
A velha bandeira da vida
Acenderá, todo farol iluminará
Uma ponta de esperança

E se virá, será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá toda certeza vã
Não sobrará pedra sobre pedra

Enquanto isso, não nos custa insistir
Na questão do desejo, não deixar se extinguir
Desafiando de vez a noção
Na qual se crê que o inferno é aqui

Existirá
E toda raça então experimentará
Para todo mal, a cura

A letra fala de esperança. As imagens da abertura da música são do mar. Como um barco à deriva em um mar revolto, o marinheiro espera ver tremular a bandeira de um porto, a brilhar a luz de um farol que o trará para um porto seguro, para um lugar de salvação. Quando ele verá? Como isso acontecerá? Ele não sabe, mas sabe que vai demolir as certezas dos profetas do fim do mundo, dos que só veem destruição e morte nos males temporários e circunstanciais de uma tempestade. Por isso ele canta: demolirá toda certeza vã, não sobrará pedra sobre pedra. Neste canto de esperança, o mal se apresenta como algo passageiro, presente, real, mas circunstancial. Ele não será eterno, pois haverá um dia em que a cura se derramará e o mal não terá mais domínio, aqui não é o inferno, aqui é a vida e a cura existe.

A intenção de Lulu Santos, conforme citado acima, não era de construir um cântico de cunho religioso, mas sim de esperança em meio à falta de políticas públicas sérias no combate à AIDS na década de 1980. Ele chamava atenção para uma realidade que estava ali, presente, mas que era constantemente ignorada e abafada, combatida e excluída, como se isso fizesse a realidade desaparecer.

O que A cura tem a ver com Daniel e a profecia das quatro bestas? Por que esse fascínio cristão por um livro apocalíptico judeu? E mais, o que isso tudo tem a nos ensinar? Vamos ao texto de Daniel 7

1 Anteriormente, durante o primeiro ano do reinado de Belsazar, rei da Babilônia, Daniel teve um sonho e visões enquanto estava deitado em sua cama. Escreveu o que havia sonhado e foi isto que viu.

2 Naquela noite em minha visão, eu, Daniel, vi uma tempestade que agitava o grande mar, com ventos fortes que sopravam de todas as direções. 3 Então, saíram da água quatro bestas enormes, cada uma diferente das demais.

4 A primeira besta era como um leão com asas de águia. Enquanto eu observava, suas asas foram arrancadas e ela ficou em pé no chão, sobre as duas patas traseiras, como um ser humano. E lhe foi dada mente humana.

5 Vi, então, a segunda besta, e ela se parecia com um urso. Levantou-se sobre um dos lados e tinha na boca, entre os dentes, três costelas. E lhe foi dito: “Levante-se! Devore a carne de muitos!”.

6 Em seguida, surgiu a terceira dessas bestas, que se parecia com um leopardo. Tinha quatro asas de ave nas costas e quatro cabeças. E lhe foi dada grande autoridade.

7 Então, em minha visão naquela noite, vi uma quarta besta, terrível, assustadora e muito forte. Devorava e despedaçava suas vítimas com grandes dentes de ferro e esmagava os restos debaixo de seus pés. Era diferente das outras três e tinha dez chifres.

8 Enquanto eu olhava para os chifres, de repente apareceu no meio deles outro chifre pequeno. Três dos chifres maiores foram arrancados pela raiz para dar lugar a ele. Esse chifre pequeno tinha olhos, como de homem, e uma boca que falava com arrogância.

9 Enquanto eu observava, foram colocados alguns tronos,
e o Ancião se sentou para julgar.
Suas roupas eram brancas como a neve,
e seu cabelo, como a mais pura lã.
Sentava-se num trono de fogo,
com rodas de chamas ardentes,
10 e um rio de fogo
brotava de sua presença.
Milhões de anjos o serviam,
muitos milhões estavam diante dele.
O tribunal iniciou o julgamento,
e os livros foram abertos.

11 Continuei a observar, pois podia ouvir as palavras arrogantes do pequeno chifre. Fiquei olhando até que a quarta besta foi morta e seu corpo, destruído e lançado ao fogo. 12 Então foi tirada a autoridade das outras três bestas, mas elas tiveram permissão de viver por mais algum tempo.

13 Depois, em minha visão naquela noite, vi alguém semelhante a um filho de homem vindo com as nuvens do céu. Ele se aproximou do Ancião e foi conduzido à sua presença. 14 Recebeu autoridade, honra e soberania, para que povos de todas as raças, nações e línguas lhe obedecessem. Seu domínio é eterno; não terá fim. Seu reino jamais será destruído.

15 Eu, Daniel, fiquei perturbado com tudo que tinha visto, e minhas visões me aterrorizaram. 16 Por isso aproximei-me de um dos que estavam em pé junto ao trono e perguntei o que tudo aquilo significava. Ele explicou: 17 “Essas quatro grandes bestas representam quatro reinos que surgirão da terra. 18 No final, porém, o reino será entregue ao povo santo do Altíssimo, e eles dominarão para todo o sempre”.

19 Então eu quis saber o verdadeiro signifi­cado da quarta besta, tão diferente das demais e tão aterrorizante. Ela havia devorado e despedaçado suas vítimas com dentes de ferro e garras de bronze e esmagado os restos com os pés. 20 Também quis saber sobre os dez chifres em sua cabeça e o pequeno chifre que surgiu depois e derrubou três dos outros chifres. Esse chifre parecia mais forte que os demais e tinha olhos humanos e uma boca que falava com arrogância. 21 Enquanto eu observava, esse chifre guerreava contra o povo santo de Deus e o derrotava, 22 até que o Ancião, o Altíssimo, veio e pronunciou a sentença em favor de seu povo santo. Então chegou o tempo de o povo santo tomar posse do reino.

23 Depois ele me disse: “A quarta besta é o quarto reino que dominará a terra, e será diferente de todos os outros. Devorará o mundo inteiro, pisoteará e esmagará tudo que estiver em seu caminho. 24 Seus dez chifres são dez reis que governarão esse império. Então surgirá outro rei, diferente dos dez, que subjugará três reis. 25 Ele desafiará o Altíssimo e oprimirá o povo santo do Altíssimo. Tentará mudar suas festas sagradas e suas leis, e eles serão colocados sob o controle dele por um tempo, tempos, e meio tempo.

26 “Contudo, o tribunal o julgará, e todo o seu poder será tirado e completamente destruído. 27 Então serão dados ao povo santo do Altíssimo a soberania, o poder e a grandeza de todos os reinos debaixo dos céus. O reino do Altíssimo permanecerá para sempre, e todos os governantes o servirão e lhe obedecerão”.

28 Assim terminou a visão. Eu, Daniel, fiquei aterrorizado por causa de meus pensamentos e meu rosto ficou pálido de medo, mas não contei essas coisas a ninguém.

Antes de falarmos do capítulo sete, vamos falar do livro de Daniel: Daniel foi deportado em 597 a.C. juntamente com três amigos pelas tropas de Nabucodonosor para a Babilônia. Ele é o personagem central do livro que leva seu nome. O livro do profeta Ezequiel parece ter um carinho por sua história. Ele é citado ao lado de Jó e Noé como uma pessoa justa da antiguidade em 14.14,20 e apontado como uma pessoa de sabedoria especial em 28.3. Esta última característica é enfatizada no livro de Daniel, principalmente por conta das revelações dos sonhos, o que, acontecendo em uma corte, torna inevitável não nos lembrarmos de José na corte egípcia do faraó.

Talvez você não saiba, mas Daniel é o livro mais recente do cânon hebraico. Sua inclusão aconteceu entre os livros chamados Escritos, e não entre os profetas. Mais tarde, a Septuaginta irá colocá-lo entre os chamados Profetas Maiores. Acredita-se que havia certa resistência rabínica quanto a inclusão do livro no cânon, principalmente por conta das rebeliões dos judeus contra os romanos, que eram articuladas a partir das visões apocalípticas de Daniel. Seja o que for, o livro entrou no cânon e é reconhecido como profético pelos autores do Novo Testamento.

O livro pode claramente ser dividido para leitura em dois grandes eixos: histórias e visões. Na primeira parte, os relatos sobre Daniel e seus amigos, na segunda, as visões propriamente ditas. Além disso, o livro é bilíngue. Daniel 1.1–2.4a e 8–12 é escrito em hebraico, todo o restante é em aramaico. Há ainda questionamentos se o capítulo 1 não teria sido escrito em aramaico e traduzido posteriormente.

O gênero literário do livro é apocalipse. As tradições e gêneros menores são organizados na estrutura do livro com o fim de revelar conhecimento sobre o final do tempo. Não se trata, portanto, de um evento único no futuro, mas de uma visão global de todos os acontecimentos até o princípio do novo tempo. Essa visão tem como propósito mais compreender o tempo presente que revelar mistérios futuros.

E o que o presente do profeta quer nos dizer, com base no capítulo 7? O sétimo capítulo é uma virada na escrita do livro. Não mais o rei tem visões, mas sim o próprio profeta. Ele não é mais um intérprete de sonhos de terceiros, mas sim de seus próprios. Na visão do capítulo sete temos a imagem de quatro bestas: leão com asas, urso, leopardo com quatro asas e uma sem identificação. Todas elas são feras terrestres, algumas com características aéreas, e que saem da água para a terra.

O que representam tais feras? Quatro impérios dos quais Daniel tinha conhecimento. A primeira fera, o Leão alado, representa Nabucodonosor e seu Império Babilônico, que do alto de sua arrogância, tem suas asas arrancadas e se torna um comum humano, não mais um ser especial. A segunda fera, o urso, representa o Império Medo, que em sua posição meio deitado, meio levantado, está pronto para devorar a qualquer momento. A terceira fera, o leopardo (em algumas traduções aparece como pantera), é o Império Persa. sua habilidade é representada pelas quatro asas, que o fazem se locomover rapidamente, e pelas quatro cabeças, que conseguem captar tudo o que acontece nos quatro cantos ao seu redor. A quarta e última fera não é possível identificar, Daniel a interpreta como sendo Alexandre, o Grande e seu Império Macedônio, visto particularmente na perspectiva da atuação selêucida sobre os judeus.

Até aqui tudo nos parece simples e de fácil associação. Quatro bestas, quatro impérios. Daniel, no entanto, adentra na imagem da quarta besta para tentar entender seu contexto. Ele veio num crescente histórico dos Impérios que dominaram a judeia e, agora, está diante do atual dominador. Agora, não a besta ganha forma humana, como leão alado, mas sim uma parte da besta. O chifre menor que nasce rasgando três outros, tem na sua ponta olhos e boca, e era bem arrogante. É nesse contexto que o julgamento se inicia e a grande besta é julgada e condenada, sendo a única exterminada imediatamente. No fim, o mal será extirpado e o reino eterno estabelecido.

A visão de Daniel apresenta uma realidade de seu contexto. Profundamente oprimidos pelos selêucidas, os judeus enfrentavam constante morte e perseguição. A força do Império Macedônio era notória e sua extensão cada vez maior. Para quem está vivendo o presente, o passado lhe parecerá sempre melhor. Não é o caso, Daniel aponta que o passado com o leão, o urso e o leopardo foram difíceis, ruins para Israel, e o presente é pior ainda, mas o melhor está no futuro, o julgamento virá sobre as nações e haverá salvação. No fim das contas… os impérios sucumbirão e retará o governo do Altíssimo.

Vivemos nossas realidades cercadas de bestas feras a nos oprimir o tempo todo. Impérios humanos que querem se valer do poder para dominar e lucrar. Muitos são os exemplos, do consumismo às drogas ilícitas, da política à religiosidade nociva, sempre haverá quem prefira o mal ao bem, a doença à cura. No nosso contexto, a profecia de Daniel vem para nos lembrar que bestas sempre existirão na história da humanidade, impérios irão se levantar e ruir, todos serão julgados pela história, mas principalmente, todos serão postos diante de Deus, que coloca fim ao mal.

Esta verdade precisa ser apropriada por nós, cristãos do século XXI, que tem assistido poderes invadindo a Igreja, se camuflando de bons cristãos, mas que na verdade são feras devoradoras, prontas para usar da Igreja e, principalmente, do povo da Igreja para satisfazer seus desejos de poder glória neste mundo. Há um mal grande nos assolando e precisamos manter firmes a consciência de que o mal tem fim.

Esta verdade precisa ser apropriada por cada um de nós, individualmente, em nossos universos particulares, em relação às nossas dores e problemas. Muitas são as feras que se levantam. Os problemas são gigantescos e, por nós mesmos, não vemos solução. Como o marinheiro desesperançado, sem perspectiva de ver terra firme, nos agarramos a nós mesmos em meio ao mar de problemas que nos cercam. Daniel nos convida a erguer os olhos e, nas palavras de Lulu Santos, enxergar que para todo mal existe a cura.

Não é uma cura para um mal, é A cura, definitiva, permanente, que demolirá o entendimento humano como as visões de Daniel o demoliram, que romperá com a lógica de que o inferno é aqui, pois só temos dias ruins, que acabará com o discurso pessimista e alarmista dos que só veem morte e destruição no outro, que nos colocará na certeza de que o amor existe e que vivemos para experimentar em nossos corpos e mentes a liberdade que vem de Cristo Jesus.

No fim das contas… restará para nós a vida, pura e simples, ao lado do Altíssimo, que nos convida a não temer as feras que se levantam ao longo da história e desejar ardentemente o Reino do Altíssimo, em que todos, inclusive os poderosos, se curvarão. O Reino virá, e não se trata de uma utopia de mais de dois mil anos, posto que já é realidade. É sobre isto que falaremos na próxima semana.

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