Não se fará mal, nem haverá destruição
Sermão para o Segundo Domingo do Advento de 2022
¹Do tronco da linhagem de Jessé
brotará um renovo;
sim, um novo Ramo que de suas raízes
dará frutos.
²E o Espírito do SENHOR estará sobre ele,
o Espírito de sabedoria e discernimento,
o Espírito de conselho e poder,
o Espírito de conhecimento
e temor do SENHOR.
³Ele terá prazer em obedecer ao SENHOR;
não julgará pela aparência,
nem acusará com base em rumores.
⁴Fará justiça aos pobres
e tomará decisões imparciais
em favor dos oprimidos.
A terra estremecerá
com a força de sua palavra,
e o sopro de sua boca destruirá os perversos.
⁵Vestirá a justiça como um cinto
e a verdade como uma cinta nos quadris.⁶Naquele dia, o lobo viverá com o cordeiro,
e o leopardo se deitará junto ao cabrito.
O bezerro estará seguro perto do leão,
e uma criança os guiará.
⁷A vaca pastará perto do urso,
e seus filhotes descansarão juntos;
o leão comerá capim, como a vaca.
⁸O bebê brincará em segurança
perto da toca da cobra;
sim, a criancinha colocará
a mão num ninho de víboras.
⁹Em todo o meu santo monte, não se fará mal nem haverá destruição,
pois, como as águas enchem o mar,
a terra estará cheia de gente
que conhece o SENHOR.¹⁰Naquele dia, o descendente de Jessé
será uma bandeira de salvação
para todo o mundo.
As nações se reunirão junto a ele,
e a terra onde ele habita
será um lugar glorioso.Isaías 11.1–10
Fim de ano. Dezembro, tempo de festas, confraternizações e, após dois anos de completo isolamento, muitos andam tão ansiosos com este tempo que se esquecem de que o ano novo já começou para aqueles que professam e vivem o Evangelho como mensagem de Salvação. Sim, o ano começou domingo passado no calendário cristão e estamos no segundo domingo do Advento, tempo de esperança.
Vivemos um novo tempo surgindo em meio ao caos de nossas agendas e realidades. Todas as esperanças e desejos de um fim de ano de alegria, paz e prosperidade, dentro em breve, se acomodarão ao caos ao nosso redor e conseguiremos, ainda, manter a esperança? É por isto que todos os anos, o calendário cristão começa com o período do Advento. Um tempo de acender a chama da esperança de vida em nós. Um tempo de olhar para as adversidades e dizer a todas elas que cremos num Rei justo e vitorioso, e que toda dor já passou. Há um futuro glorioso, segundo Isaías, e nós, acredite-me, já estamos nele. Vamos entender isto um pouco melhor hoje.
O livro do profeta Isaías é uma grande colcha de retalhos de profecias escritas ao longo do tempo, entre 740a.C. e 530a.C. Durante anos, o estudo de Isaías se deparou com diferenças de linguagem, temáticas e contexto histórico. Como definir que o livro seja de autoria de um único profeta que tenha vivido mais de 200 anos? Só podemos compreender por meio de uma abordagem que divide o livro em três partes, conforme semelhança textual, e aceitarmos o fato de que Isaías tenha deixado como legado uma escola profética. Assim, temos três livros num só: Isaías (1–39), Dêutero-Isaías (40–55) e Trito-Isaías (56–66).
Isaías, o profeta filho de um desconhecido Amoz, é natural de Jerusalém e, como mostram alguns textos, tinha acesso à corte do rei. Isaías deve ser lido na perspectiva de um profeta ligado à classe alta da sociedade. O cerne da primeira parte do livro são os 11 primeiros capítulos. Três temas emergem da primeira parte do texto de Isaías.
- A noção do resto, ou seja, a ideia de que uma pequena parte do povo sobreviverá ao juízo e que Javé deixará sobrar. Não devemos tomar este texto numa perspectiva negativa, mas de compreensão de que, após grande tragédia, restará um grupo fiel.
- Teologia da presença. Sião é o lugar da presença de Deus, não de sua morada. Esta perspectiva muda a compreensão de que há a obrigatoriedade da presença de Javé, porém, havendo fidelidade, é ali que se manifesta sua presença.
- Creia! É a chave da relação do povo com Javé. Não estamos falando da relação de fé, que se desenvolve com Javé, mas sim de uma confiança incondicional no poder salvífico de Deus, sempre apontada em contraposição à atitude do Rei Acaz, que preferia confiar em alianças políticas.
É neste contexto que se enquadra o capítulo 11, repleto de imagens de esperança e reconstrução da relação de Javé com seu povo. Não é mais no Sinai, mas do tronco de Jessé, portanto, de uma linhagem, que se erguerá um estandarte, uma bandeira de salvação que será vista por todos.
É imperativo anotar, para que você tenha em mente, que nosso texto é uma profecia, escrita em poesia. Como obra poética escrita entre 740a.C. e 530a.C., possuí uma característica muito marcante: o paralelismo. Recurso usado para marcar uma ideia e ensino, visando fixar sua intenção na mente de quem lê e declama a poesia.
Além disso, é preciso ainda pontuar a importância da poesia profética para os nossos dias. Quando vivemos cercados de profetas do caos e da desordem, só a poesia pode nos apontar o caminho da esperança. Como sei disso? Lendo Isaías 11 vemos o quanto um cenário de destruição gera no poeta profeta um canto de esperança.
É tendo em mente que a restauração do povo se daria como uma restauração perene e única, portanto eficaz, é que quero destacar três palavras do texto para nossa meditação. A primeira delas:
נֵצֶר NAY’-TSER: renovo.
Renovo. O verso 1, dependendo da tradução que você ler, terá duas vezes esta palavra. Uma, traduzida de חֹטֵר KHO’-TER, ramo, rebento, vara, e outra de NAY’-TSER, rebento, broto, ramo, sempre no sentido figurado. É esta última que quero destacar. O autor não a utiliza de maneira despropositada. E os tradutores tentam decifrar este sentido. Um novo ramo que vai brotar e trazer vida. O que isto quer dizer?
Em outras palavras, Isaías está profetizando que a linhagem de Davi será a direção a ser seguida. Que a partir dele se contará, pelo tempo, a restauração. O vínculo não é mais uma arca da aliança, nem um templo, nem um monte, mas sim uma pessoa que descenderá do tronco de Jessé. Por quê? Para cumprir a promessa de Deus a Davi registrada em 2 Samuel 7.11b-16 que diz:
“¹o SENHOR declara que fará uma casa para você, uma dinastia real! ¹²Pois, quando você morrer e for sepultado com seus antepassados, escolherei um de seus filhos, de sua própria descendência, e estabelecerei seu reino. ¹³Ele é que construirá uma casa para meu nome, e estabelecerei seu trono para sempre. ¹⁴Eu serei seu pai, e ele será meu filho. Se ele pecar, eu o corrigirei e disciplinarei com a vara, como qualquer outro pai faria. ¹⁵Contudo, não retirarei dele meu favor, como o retirei de Saul, quando o removi do seu caminho. ¹⁶Sua casa e seu reino continuarão para sempre diante de mim, e seu trono será estabelecido para sempre’”.
Sabemos que esta casa, estabelecida em Davi, está repleta de erros, tanto de Davi, quanto de seus filhos. Temos uma lista de crimes e pecados que vão da prostituição com outros deuses a assassinatos, passando por violência sexual, corrupção e extorsão. Ora, se tudo isso veio do tronco de Jessé, da Raiz de Davi, como estabelecer, então, um novo reino? Somente a partir de um novo broto, de um renovo. E este novo reinado terá um novo Rei, cujo Espírito do Senhor estará com ele.
Este Espírito dará ao novo Rei sabedoria e discernimento para que possa agir. Conselho e poder para que possa reger. Conhecimento e temor do Senhor para que possa obedecer. Os primeiros cristãos, no Século I, a lerem estas palavras, tinham ao lado deles homens e mulheres que diziam: eu conheci esta pessoa sábia e com discernimento, com palavras e poder, com conhecimento da vontade de Deus e temor ao Pai. Ele é Jesus de Nazaré.
Este olhar para Jesus a partir deste texto é um olhar cristão, que reconhecem em Jesus o renovo de Deus para restauração, não só de Israel, mas de todo o mundo. Este renovo se move, segundo o texto de Isaías, com…
צֶדֶק TSEDEQ: justiça.
Justiça. Só pede por justiça aquele que sente na pele a dor da injustiça. Só pede por justiça aquele que se compadece do injustiçado. Nunca se encontrará justiça em um mundo onde os criminosos fazem as leis. Com toda vênia e respeito aos juristas de plantão, sabemos que toda lei possuí brechas e falhas. Não estou incentivando ninguém a romper o pacto social de respeito às leis, pois isso configuraria crime. Só não podemos fazer da justiça dos homens o modelo e paradigma da justiça divina. Pois nunca será.
Também a justiça divina não é algo subjetivo, perdido nos emaranhados de significados teológicos. Não, é um conceito concreto e visível para nós. Preste atenção: justiça divina não é um ato único e pontual, mas sim constante e eterno. Vemos isto em nosso texto. O que Isaías passa a narrar a partir do verso 3 é a imagem daquele que sofre com a injustiça enorme e que sabe bem que ele mesmo causou tal dor. O sistema de leis e regras foram tão torcidas e distorcidas que, segundo o profeta Habacuque 1.4: “A lei está amortecida, e não se faz justiça nos tribunais. Os perversos são mais numerosos que os justos e, com isso, a justiça é corrompida”.
Por isso, a promessa é de uma justiça que não se prende em aparências, rumores ou indícios. É uma justiça que olha para o pobre e o oprimido e age de maneira imparcial a fim de restaurá-los. A justiça, no entanto, não é um ato único e definitivo, mas uma prática constante na vida do Rei. Ele a tem consigo, como um cinto a segurar suas vestes.
A justiça de Deus, que terá como executor o renovo que brotará da raiz de Jessé, é justiça divina. Alguns comentaristas chamam de justiça absoluta. Eu tenho receio temor com este termo. A justiça não vem para arrebentar com tudo, mas para reestabelecer a ordem em meio ao caos. É a justiça que não tolera a mentira, seja para manter aparências de santidade, seja para espalhar rumores contra outros. Justiça que não tolera a perversidade de quem extorque e literalmente consome a vida, os corpos e mentes das pessoas, visando sua glória pessoal.
Por isso que é um renovo, porque todos os reis, até então, escolheram a perversidade, a mentira, as aparências, os rumores a viver a vontade de Deus. Em todos eles se encontra a causa e a consequência dos erros que o profeta estava enfrentando. O novo Rei estabelece uma nova realidade construída a partir do…
דֵּעָה יְהוָה DAY-AW ADONAI: conhecimento do Senhor.
Conhecimento do Senhor. A nova realidade estabelecida com o cumprir constante e eterno da justiça é a possibilidade de inimigos naturais e mortais se assentar e conviver. Quando a justiça de Deus é realidade, não há extermínio, mas coexistência real e pacífica. Há segurança para o mais fraco e paz para todos.
As imagens dos versos 6 a oito não podem ser tomadas de forma literal. Jamais. Elas são completamente figurativas e didáticas para aquele povo. Numa sociedade que vivia do pastoreio, proteger os rebanhos do lobo, do leopardo, do leão e do urso é uma imagem bem viva de sua rotina. Outra imagem despertada pelo profeta é da criança com a cobra. A cobra que sorrateira entra nas casas, agora é visitada por uma criança, que não sofrerá o mal que ela causar. No meio disso tudo, o verso 6 nos brinda com uma imagem que amo recordar nesta época do ano: e uma criança os guiará.
A criança é um sinal de nova vida. Quando nasce uma criança, nasce um pai, uma mãe, uma família. Um reino se forma em torno daquele pequeno ser que carece de cuidados e orientação. Até dar os primeiros passos, a criança vencerá enormes desafios. A palavra usada por Isaías nos remete a uma criança não tão bebê. קָטָן נַעַר KAW-TAWN NAH’-AR: jovem, menino, pequenino, sem importância. Ele ainda não atingiu a idade de ser contado, mas também não é mais um bebê. É uma criança, das muitas que conhecemos e vemos todos os dias.
Esta pequena criança guiará o bezerro e o leão. Cristãos, ao longo do tempo, identificaram esta criança como aquela que nasceu em Belém. Dentre os muitos escritos apócrifos do primeiro e segundo séculos, circulou um evangelho não canônico que narrava a fuga de José, Maria e Jesus para o Egito. No caminho, num fim de tarde, buscando uma caverna para se abrigar, se aproximaram de uma e Jesus, sentindo o perigo, desceu dos braços da mãe e entrou na caverna, acalmando os dragões e provendo segurança para que a família pudesse descansar. Este é um dos muitos relatos que se encontra ligando esta criança que apascenta o leão e o bezerro a Jesus. Claramente, não temos tal relato no cânon por diversos outros motivos que podemos conversar depois.
Fato é que este renovo, que agirá com justiça pois está repleta do conhecimento do Senhor é aquele que garantirá que a maldade não terá mais espaço e a terra estará repleta de pessoas que conhecem a Javé. Como isto será possível? Este renovo é um …
Conclusão: מְנוּחָה NACE AM: estandarte aos povos — salvação
Bandeira de Salvação. Estandarte aos povos. Quero concluir esta mensagem olhando para esta imagem do verso 10. Em meio ao caos da vida, de um mundo repleto de injustiças, opressões e pobrezas, com pessoas más e dispostas à todo tipo de maldade, onde encontraremos justiça, segurança e paz?
Há uma bandeira levantada, hasteada não para demarcar um território ou declarar uma guerra, mas sim para proclamar e assegurar a salvação para todos. O que Isaías proclama é que haverá uma bandeira que tremulará e será vista por todos, em todo tempo e lugar. As nações se reunirão junto ao descendente de Jessé para viver num lugar glorioso.
Para Isaías, esta promessa do verso 10 é a certeza que o remanescente fiel se juntará não em um Templo ou Monte, mas ao redor de um Rei glorioso para viver a consumação de sua fé no Deus que Salva. E isto não se dará só para um privilegiado grupo de remanescentes fiéis, as nações se reunirão junto ao renovo. Não é mais uma salvação para um povo só, mas sim para todas as nações, em todos os tempos. Nações no texto bíblico não deve ser entendido pelo conceito moderno de Estado, mas sim como diversidade de povos, religiões e culturas. Portanto, para o profeta Isaías, é a promessa da redenção se concretizando.
Esta é uma promessa que nós cristãos compreendemos que ganha vida em Jesus. Desde o primeiro século, cristãos ao longo do tempo e espaço reconhecem nas palavras de Isaías uma promessa cumprida. Jesus é o renovo que veio e estabeleceu seu reino de justiça, segurança e paz. Desde então, este reino está sendo gestado, geração após geração, construindo a vida, vivendo a justiça, segurança e paz de Deus em nossas vidas e proclamando que há um tempo e lugar que em breve se consumará.
E enquanto não se consome, o que fazemos? Paramos de viver o Natal como uma mera lembrança de um fato ocorrido há dois mil anos e passamos a viver o Advento: a certeza da promessa cumprida e a esperança de que ele voltará. Esta esperança esta firmada na promessa da profecia de Isaías, que já se concretizou em Jesus.
Não à toa nosso texto está escrito em poesia. Repleto de paralelismos para reforçar bem, na mente e coração, a promessa de Javé. Toda profecia nasce de um poeta, toda poesia nasce de um profeta. E assim, profetas poetas nos convidam para um novo tempo. Então, ressignificaremos o poeta Alceu Valença e cantaremos. Então, ressignificaremos o poeta Alceu Valença e cantaremos:
A voz do anjo sussurrou no meu ouvido
Eu não duvido já vivencio os teus sinais
Que tu virias numa manhã de domingo
Eu te anuncio nos sinos das catedrais
Tu vens, tu vens, eu já vivencio os teus sinais…
Sermão escrito para o Segundo Domingo do Advento de 2022 e pregado na Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi.