Eu não sou assim, mas dói
Um desabafo pessoal pastoral em tempos de ódio
A pandemia está aí, o debate político em torno dela estabeleceu duas posições e petrificou conceitos e preconceitos. O dualismo do debate emburrece e os estereótipos nadam de braçadas em cenários assim. É nesse contexto que sofro, porque o estereótipo de pastor evangélico foi impulsionado como um inimigo dos médicos, enfermeiros, pesquisadores, profissionais de limpeza, cientistas e da população em geral. Como se todo pastor fosse burro o bastante para não saber o valor do isolamento social em tempos de pandemia. Isso não deveria me doer, afinal, não me encaixo nesse estereótipo, mas me dói, porque sou pastor. Dói porque boa parte daquilo que sou é definido pelo ser pastor, pelo exercer o pastorado. Por isso me dói. Dói e continuará a doer, visto que uma classe de pastores estão fazendo questão de enlamear o nome de Cristo. Poderia apelar para o discurso da justiça divina, sublimar isso tudo não me identificando com eles, mas dói ter que explicar toda vez que categoria de pastor eu sou. Tipificamos para nos safar, mas o pastorado está aí, como ministério, como mandato de Jesus a cuidar dos que são seus.
Perdemos tempo precioso tendo que explicar o que não precisaria ser explicado. Nesse contexto, já começo a experimentar reações duras de pessoas que menosprezam o pastorado, que encaram o pastor como meio de exploração e colocam todos no mesmo balaio. Estou falando de gente “desconstruída, inclusiva e socialmente esclarecida”. Por incrível que pareça, é da esquerda “rede social” que vem o maior preconceito nesses tempos. Mas a direita não fica atrás, pois está alimentando o discurso da ignorância e do controle de massas por meio das igrejas. Não tem dualismo político nessa. Tem ignorância. Os estereótipos são uma das muitas engrenagens dessa máquina de poder que quer separar tudo em um “eles x nós”. Não sabe enxergar as ‘nuances’, apenas o preto no branco. Como pastor, isso dói, porque o mundo vai se fechando cada vez mais em seus guetos e bolhas. A diversidade de pensamento, credo e forma de viver a fé vai sendo achatada pelo rolo compressor que quer colocar todos no mesmo padrão de fé. E isso não é um movimento de fora das igrejas, mas de dentro delas.
Alinhado a tudo isso, existe outra coisa que me dói. A falta de reciprocidade e empatia para com o próximo. Passados os primeiros dias de quarentena, o discurso “paz e amor”, “tudo vai ficar bem”, “conte comigo”, foi abruptamente trocado pelo “bloqueio mesmo”, “sai daqui que eu tô surtado”, “era só o que me faltava, crente aborrecendo”. Tais expressões eu li e vi em outros perfis e interações. Nada escapa à ignorância e a desconstrução das relações sociais agora é de profundo interesse de quem se alimenta e lucra com a dicotomia social. A falta de empatia num momento de crise comunitária como a que vivemos apenas alimenta mais e mais o ódio e a separação. Numa sociedade onde o diálogo é pautado pelas brigas, o resultado é calamidade. Não que antes da pandemia fosse as mil maravilhas, mas como sociedade — independente de religião — temos uma ótima oportunidade de mudar a forma como nos relacionamos. A escolha aqui é clara: ou exercitamos a empatia e o apoio mútuo durante os dias que virão, ou voltaremos pior do que entramos na quarentena.
Tudo isso me dói muito.