A visão além do alcance
Com Jesus vemos muito mais além do que está diante de nós
Em 1986 estreou na TV brasileira um desenho que fez a mente de muitos de minha geração. Ele contava a história de um grupo de felinos humanoides que, tendo seu planeta destruído, migraram para um novo planeta, onde lutavam por seu espaço contra um vilão decrépito que se transformava em forte com apenas uma frase que causava terror nas mães que a ouviam.
Thundercats tinha uma narrativa envolvente e, por cinco anos, fez sucesso por aqui, deixando saudades para muitos.
O protagonista da série tinha em sua mão uma espada que possuía, em seu centro, o olho de Thundera, que lhe dava a visão além do alcance. Com ele, conseguia enxergar o que não estava diante de seus olhos.
Tomo emprestado este jargão para falar daquilo que não vemos, ainda que esteja diante de nós.
A visão além do alcance está disponível para nós, não num olho de Thundera, mas com o abrir dos olhos que se dá por meio da ação de Jesus em nossas vidas. Com Jesus vemos muito mais além do que está diante de nós. Vamos à leitura de João 9.
1Enquanto caminhava, Jesus viu um homem cego de nascença. 2Seus discípulos perguntaram: “Rabi, por que este homem nasceu cego? Foi por causa de seus próprios pecados ou dos pecados de seus pais?”.
3Jesus respondeu: “Nem uma coisa nem outra. Isso aconteceu para que o poder de Deus se manifestasse nele. 4Devemos cumprir logo as tarefas que nos foram dadas por aquele que me enviou. A noite se aproxima, quando ninguém pode trabalhar. 5Mas, enquanto estou aqui no mundo, eu sou a luz do mundo”.
6Depois de dizer isso, Jesus cuspiu no chão, misturou a terra com saliva e aplicou-a nos olhos do cego. 7Em seguida, disse: “Vá lavar-se no tanque de Siloé” (que significa “enviado”). O homem foi, lavou-se e voltou enxergando.
8Seus vizinhos e outros que o conheciam como mendigo começaram a perguntar: “Não é este o homem que costumava ficar sentado pedindo esmolas?”. 9Alguns diziam que sim, e outros diziam: “Não, apenas se parece com ele”.
O mendigo, porém, insistia: “Sim, sou eu mesmo!”.
10“Quem curou você?”, perguntaram eles. “O que aconteceu?”
11Ele respondeu: “O homem chamado Jesus misturou terra com saliva, colocou-a em meus olhos e disse: ‘Vá lavar-se no tanque de Siloé’. Eu fui e me lavei, e agora posso ver!”.
12“Onde está esse homem?”, perguntaram.
“Não sei”, respondeu ele.
13Então levaram aos fariseus o homem que havia sido cego, 14pois foi no sábado que Jesus misturou terra com saliva e o curou. 15Os fariseus encheram o homem de perguntas sobre o que havia acontecido, e ele respondeu: “Ele colocou terra com saliva em meus olhos e, depois que eu me lavei, passei a enxergar!”.
16Alguns dos fariseus disseram: “Esse homem não é de Deus, pois trabalha no sábado”. Outros disseram: “Mas como um pecador poderia fazer sinais como esse?”. E havia entre eles uma divergência de opiniões.
17Os fariseus voltaram a perguntar ao homem que havia sido cego: “O que você diz desse homem que o curou?”.
“Ele deve ser profeta”, respondeu o homem.
18Os líderes judeus se recusavam a crer que ele havia sido cego e estava curado, por isso mandaram chamar os pais dele 19e perguntaram: “Ele é seu filho? Ele nasceu cego? Se foi, como pode ver agora?”.
20Os pais responderam: “Sabemos que ele é nosso filho e que nasceu cego, 21mas não sabemos como pode ver agora nem quem o curou. Ele tem idade suficiente para falar por si mesmo. Perguntem a ele”.
22Seus pais disseram isso por medo dos líderes judeus, pois estes haviam anunciado que, se alguém dissesse que Jesus era o Cristo, seria expulso da sinagoga. 23Por isso disseram: “Ele tem idade suficiente. Perguntem a ele”. 24Então, pela segunda vez, chamaram o homem que havia sido cego e lhe disseram: “Deus é quem deve receber glória por aquilo que aconteceu, pois sabemos que esse Jesus é pecador”.
25“Não sei se ele é pecador”, respondeu o homem. “Mas uma coisa sei: eu era cego e agora vejo!”
26“Mas o que ele fez?”, perguntaram. “Como ele o curou?”
27“Eu já lhes disse!”, exclamou o homem. “Vocês não ouviram? Por que querem ouvir outra vez? Por acaso também querem se tornar discípulos dele?”
28Então eles o insultaram e disseram: “Você é discípulo dele, mas nós somos discípulos de Moisés! 29Sabemos que Deus falou a Moisés, mas nem sabemos de onde vem esse homem”.
30“Que coisa mais estranha!”, respondeu o homem. “Ele curou meus olhos e vocês não sabem de onde ele vem? 31Sabemos que Deus não atende pecadores, mas está pronto a ouvir aqueles que o adoram e fazem a sua vontade. 32Desde o princípio do mundo, ninguém foi capaz de abrir os olhos de um cego de nascença. 33 Se esse homem não fosse de Deus, não teria conseguido fazê-lo.”
34“Você nasceu inteiramente pecador!”, disseram eles. “E quer ensinar a nós?” Então o expulsaram da sinagoga.
35Quando Jesus soube do que havia acontecido, procurou o homem e lhe disse: “Você crê no Filho do Homem?”.
36“Quem é ele, senhor?”, perguntou o homem. “Eu quero crer nele.”
37Jesus respondeu: “Você o viu, e ele está falando com você!”.
38“Sim, Senhor, eu creio!”, declarou o homem. E adorou a Jesus.
39Então Jesus disse: “Eu vim a este mundo para julgar, para dar visão aos cegos e para fazer que os que veem se tornem cegos”.
40Alguns fariseus que estavam por perto o ouviram e perguntaram: “Você está dizendo que nós somos cegos?”.
41“Se vocês fossem cegos, não seriam culpados”, respondeu Jesus. “Mas a culpa de vocês permanece, pois afirmam que podem ver.”
Quero, antes de falar do nosso texto especificamente, falar do Evangelho de João.
O evangelho de João é, em grande medida, o mais diferente dos quatro evangelhos. É notável que o autor emoldure as ações de Jesus em torno de reflexões temáticas, o que nos entrega capítulos inteiros sobre determinado milagre ou episódio, ampliando-os com diálogos e cenas não narradas nos sinóticos.
Por conta da quantidade de explicações acerca dos costumes judeus presente no texto, podemos concluir que seu público leitor original se tratava de cristãos não judeus da passagem do primeiro para o segundo século. Por inúmeras vezes palavras hebraicas e aramaicas são traduzidas para melhor compreensão dos leitores.
A autoria é tradicionalmente atribuída a João, filho de Zebedeu, um dos doze discípulos de Jesus, apresentado no acréscimo do capítulo 21 como “discípulo a quem Jesus amava”. O distanciamento temporal e a teologia empregada no livro podem nos levar a questionar a autoria joanina. Prefiro fechar com a tradição e manter meu voto em João mesmo.
Disse há pouco que o capítulo 21 é um acréscimo. Não se espante com isso. O estilo redacional e termos utilizados nos conferem tal conclusão, algo comum para o período e não torna o texto menos inspirado por conta disso.
Disse também que seu público leitor original se encontrava na passagem do primeiro para o segundo século. Os mais conservadores o situam entre 70–100d.C. A pesquisa bíblica expande esse período para entre 100–110d.C. Seja qual for, é no final do primeiro século e com um distanciamento de mais de quatro décadas dos acontecimentos, o que é um bom tempo.
Podemos apontar pelo menos dois grandes eixos de leitura para o Evangelho: a revelação de Jesus diante do mundo e a revelação de Jesus diante dos seus. Ao redor destes eixos se encaixam o Hino do Logos (capítulo 1), o testemunho do Batista e a vocação dos discípulos, a paixão e ressurreição, e o epílogo com o acréscimo.
Destaco aqui o Hino ao Logos. Influenciado pelo hoje apócrifo Sabedoria de Salomão, o evangelista João desenvolve a chamada Teologia do Logos. Foi em Sabedoria de Salomão que se lançou bases para o entendimento do verbo encarnado como a sabedoria de Deus personificada e visível diante de todos. O evangelista evolui um conceito já existente no meio judeu da época, aplicando-o a Jesus.
No hino são inseridas duas partes que relatam sobre o Batista, que é conscientemente menor em relação ao Logos. Na última estrofe, o Logos é identificado como o Filho de Deus, que se torna carne, aqui entendida como sinônimo de fraqueza, sem, contudo, perder sua glória. É o Logos, com acesso a Deus, as pessoas dependem dele e de sua revelação e interpretação de Deus.
A redação final do evangelho, disse anteriormente, acresce um capítulo. Ao que parece, a intenção é esclarecer a relação entre Pedro e o discípulo amado, que reconhece Jesus, permanece até sua vinda, em contraste com Pedro, que se apressa e ir ao encontro de Jesus e deve apascentar a comunidade, participando assim do destino de morrer por Jesus. No final, a redação destaca a verdade do testemunho do discípulo amado, a quem se refere como testemunha dos fatos.
Nosso texto é um interessante relato de um confronto com os fariseus que se dá diante de um fato que abala as interpretações da Lei. Os olhos fechados dos discípulos, do mendigo e dos fariseus são abertos.
Por isso afirmo que o nosso texto é um abrir de olhos. Em três momentos, o abrir de olhos se dá e vemos como as reações são diferentes. Sempre que se encara o milagre somos levados a reagir. Nem todo milagre trará boas reações às pessoas. Nem todo mundo está disposto a celebrar sua cura, salvação ou vitória.
Jesus caminhava, acompanhado dos discípulos, pelas ruas de Jerusalém. Ao avistarem um mendigo cego que, aparentemente, era conhecido de muitos na cidade, os discípulos resolvem tirar uma dúvida com Jesus: “Rabi, por que este homem nasceu cego? Foi por causa de seus próprios pecados ou dos pecados de seus pais?”.
A pergunta dos discípulos pode parecer absurda, mas não é. Ainda hoje há quem se deixe levar por esse absurdo da causa e consequência em relação à vida espiritual, aumentando o mérito e diminuindo a graça. A pergunta não era, e não é absurda.
O pensamento judaico de então, regido pela lei, vivia na ideia de retaliação. Quem nos ajuda a compreender isso é Werner de Boor, pastor luterano, que nos diz.
Do destino da pessoa pode ser depreendido sua devoção ou seu pecado. Do devoto Deus se compraz, por isso vai bem na vida. Infortúnio, miséria e enfermidade, porém, são sinais de que um pecado especial provocou a ira de Deus e seu castigo. O que Moisés e os profetas disseram claramente ao povo de Israel referente à sua história e o que o próprio Israel experimentou sempre de novo na felicidade e no infortúnio (Dt 28; 2 Cr 20:20; Lm 2:43–45), isso era aplicado ao indivíduo e a seu destino (cf. os discursos dos amigos de Jó!). Isso estava tão profundamente arraigado nos corações que era muito comum que alguém exclamasse ao ver um sofredor, por exemplo, um cego: “Bendito seja o Juiz da verdade!” A pergunta dos discípulos era, pois, muito óbvia. Mostra, porém, como esse pensamento “legalista” tinha de tornar a pessoa insensível e impiedosa.
A resposta de Jesus à pergunta revela a urgência da missão. Quando se tem o senso de urgência da missão, não se questiona a origem do mal, pois sabemos que sua origem é o pecado.
No caso do cego, não foi o pai e a mãe, nem o próprio que erro, mas sim a humanidade. O pecado alterou nosso DNA e nos fez frágeis.
A urgência da missão não está na discussão da causa, mas se concentra na libertação do que sofre a consequência. O pecado é a causa, não há o que discutir.
Ao responder aos discípulos, Jesus aponta a direção. Este homem vive na escuridão, mas eu sou a luz do mundo. Luz que ilumina em meio às trevas existências dos que tem os olhos fechados para a vida.
É o que Jesus fez. Mas ele não o fez pelo poder de sua palavra, decepcionando os que pensam em Jesus como um mestre intelectualizado, frustrando os que enfatizam somente o poder da Palavra de Jesus e que acham que sua palavra é tudo.
Nem só de palavras é feita a sabedoria de Deus, expressa em Jesus. É feita de olhares, silêncios e gestos. Ainda que os gestos sejam um pouco confuso para nós. Saliva e terra não são bem um bálsamo higiênico, não é mesmo?
Jesus fez esta pasta de terra e saliva e o mandou ao tanque de Siloé se lavar. Siloé significa “enviado”. Por que este nome para o tanque? Por a água ser enviada da fonte de Giom para o tanque por meio de um túnel na rocha, obra de engenharia do Rei Ezequias, 2 Reis 20.20 regista que:
“Os demais acontecimentos do reinado de Ezequias, incluindo a extensão de seu poder e como construiu uma represa e cavou um túnel para abastecer a cidade com água, estão registrados no Livro da História dos Reis de Judá.”
A água que jorra da fonte é enviada ao tanque para saciar a cidade. Jesus é enviado da fonte de toda vida para saciar a humanidade. O paralelo é simples e objetivo, e é isso mesmo que João está nos mostrando.
Não são as águas que são milagrosas, mas sim aquele que envia que tem o poder da vida. Deus enviou seu Filho, Jesus envia os enfermos para a cura, seus discípulos para a missão.
O resultado do envio é tão simples e prático quando o próprio envio. Cura! Agora ele voltou a enxergar! Jesus não nos envia para prisões, mas para a liberdade! Onde há Cristo, ali há liberdade!
No entanto, nem todo mundo está pronto para ver a libertação do outro. As pessoas, nas ruas, que o conheciam, ficaram surpresos. Como pode isso? Ele não enxergava e agora enxerga?
O inexplicado gera curiosidade e, por mais que testemunhasse do que vivera, o homem é levado diante dos fariseus. Por quê? Um milagre acontecerá. Algo que não encontra explicação compreensível para aquele povo. Quem pode responder? Quem pode elucidar? Os fariseus.
Os fariseus, a esta altura, já estavam entranhados em toda a sociedade judaica. Intérpretes da Lei, mantenedores da religião e controladores do cumprimento, eles eram a expressão viva da ideia de retaliação diante do pecado. Não faltam exemplos nos evangelhos sobre isso.
É por isso que eles são procurados para tudo no cotidiano dos tempos bíblicos. Além disso, eram intelectuais, gostavam de discutir e criar situações hipotéticas para debater por horas sobre um tema à luz das interpretações clássicas de seus antepassados.
Só que o que estava diante deles não era uma situação criada, mas sim um fato que expunha alguns dos maiores baluartes da lei à prova: a cura de um cego de nascença, num sábado, por um homem que já vinha causando desgosto aos fariseus.
Os fariseus tentam encontrar respostas em todo canto. Perguntam ao curado, aos pais, se exaltam, não acham explicação e passam a atacar o que curou e o que fora curado. Diante do inexplicável, a alienação é a saída mais fácil.
Jesus é diferente. Sabendo o que os fariseus fizeram ao homem, foi ao encontro dele. Jesus só expulsa de sua presença mercadores, aqueles que vendem a fé por um punhado de moedas. Jesus acolhe o pecador e o orienta.
Ao reencontrar-se com o curado, ele apresenta-se como o Filho do Homem, o Filho de Deus que veio para trazer luz ao mundo. Quando se está diante do Filho de Deus a reação é a adoração!
Diante de tudo o que acontecera, Jesus registra sua percepção: “…eu vim para julgar, para dar vista aos cegos…”. Julgar? Quem? Os religiosos, os que usam da religião como ferramenta de opressão.
Tanto isso é verdade que alguns fariseus vestem a carapuça: “você está dizendo que nós somos cegos?” A cegueira dos fariseus é gritante, pois dizem quem veem, mas nada veem. Não enxergam além daquilo que suas mentes cauterizadas lhes permite ver. Não possuem a visão além do alcance.
Conclusão
Ao concluir esta mensagem, lanço aqui alguns desafios para cada um de nós.
Primeiro, avaliarmos se não estamos como os discípulos, presos a uma interpretação equivocada da Palavra de Deus, interpretação esta que prioriza a minha segurança e vontade de ser como eu sou.
Segundo, se não estamos como os fariseus, tentando encontrar explicações para aquilo que é para ser vivido e celebrado. Ignorando que o agir de Deus se dá segundo sua santa vontade e não o nosso querer.
Terceiro, se estamos adorando a Jesus sempre que nos deparamos com o milagre da vida ao nosso redor. Não podemos ser ingratos com Deus, mas sim reconhecer sua soberania e graça sobre nós.
Quarto, somos enviados por Jesus a sermos canal de vida e bênção. Temos vivido assim, ou temos sido água parada, imprópria para o uso, largada num canto, juntando dengue e outros parasitas?
Estes desafios são para despertarmos a nossa mente e coração. Abra-se para o que Deus tem para você. Ele hoje abre nossos olhos para contemplarmos a vontade dele para nós. Vamos viver. Não permita que as amarras da religiosidade e do falso moralismo te prendam onde você está.
Como disse no início da mensagem, três abrir de olhos ocorreram em nosso texto. Os discípulos abriram os olhos para a realidade do Reino. O cego abriu os olhos para a vida e vida eterna. Os fariseus abriram os olhos e não gostaram do que viram, preferiram ficar na prisão da escuridão.
Onde há Cristo, ali há liberdade! Banhe-se nas águas da vida! Abra os olhos e enxergue além do que se vê ao redor. Enxergue onde há necessidade de vida. Somos Siloé, enviados a levar vida aos que se encontra na escuridão da morte.